Foto aérea recente de Barão de Cotegipe
Muita discussão tem ocorrido ultimamente sobre o governo militar iniciado em 1964. Vivi durante todo esse período como estudante universitário e, a partir de 1969, como único médico responsável pelo Hospital São Vicente de Paulo, na pequena cidade de Barão de Cotegipe. Essa cidade ainda era jovem, recentemente emancipada, com uma população total de aproximadamente doze mil habitantes, situada no interior do estado do Rio Grande do Sul, próxima à divisa com Santa Catarina. Naquela época, a vida era bastante segura, tanto na cidade quanto nas colônias. Mesmo em Erechim, a maior cidade vizinha, tudo transcorria tranquilamente, e quase nada se ouvia falar dos acontecimentos no centro do país. Sem televisão, que ainda demoraria a chegar, as notícias vinham pelas emissoras de rádio ou pelo jornal Correio do Povo, que chegava até nós no dia seguinte à publicação em Porto Alegre.
Por volta de 1973, decidi construir uma casa, pois, nessa época, já estava casado e tinha um filho. Comprei uma chácara das mesmas irmãs de caridade, que também eram proprietárias do hospital. Ficava estrategicamente localizada logo atrás do mesmo. Bastava atravessar uma estreita rua sem calçamento e, através de um pequeno portão, passar pela grande e bem cuidada horta do hospital para chegar ao meu trabalho. A construção levou alguns meses para ficar pronta, e toda a água necessária provinha de um grande poço localizado na minha chácara, que também servia para irrigar toda a plantação do hospital, bem como para tratar o gado de leite que possuíam.
O poço tinha um reservatório que armazenava muitos metros cúbicos de água e nunca secava, mesmo nas maiores estiagens, conforme relato dos vizinhos. No entanto, por diversos motivos, a água não era própria para consumo humano. Como ainda não havia água tratada no município, o que demoraria alguns anos para chegar, precisei pensar na abertura de um outro poço, mais acima no morro, de onde, por gravidade, a água poderia chegar até a casa.
Após ouvir vários conhecidos e vizinhos, optei por contratar um famoso poceiro para realizar a tarefa. Primeiramente, ele deveria encontrar o ponto exato por onde passava o veio de água para fazer a perfuração. Confesso que nunca havia visto como se fazia um poço e estava bastante curioso para acompanhar os trabalhos. No dia em que o poceiro iniciou o trabalho, eu estava lá para conferir como ele conseguiria encontrar a água.
Com uma forquilha de pessegueiro, cortada ali mesmo de uma antiga árvore, ele começou a andar pelo terreno, tendo essa forquilha firmemente presa nas mãos. Segurava pelos dois galhos maiores, compridos talvez uns 40 cm, e apontava para a frente, mantendo o conjunto na horizontal. De vez em quando, a forquilha pendia, fazendo um movimento brusco em curva, puxando fortemente para baixo, e o auxiliar do poceiro então marcava o local com uma pequena estaca de madeira.
Depois de algumas dezenas de marcações e muitos metros percorridos, o poceiro solenemente anunciou, para a dezena de curiosos que acompanhavam seu trabalho, o local exato onde deveria fazer a escavação. Ali embaixo, encontrava-se a água em abundância. Chegou mesmo a estimar a profundidade em que a mesma seria encontrada. Disse ainda que o veio era bastante forte e teríamos água em quantidade.
Eu não estava acreditando muito naquele primitivo e desconhecido processo, apesar da cega credulidade dos meus vizinhos que, com admiração, acompanhavam o trabalho. Naquele dia, foram cavados pouco mais de um metro de profundidade. Na manhã seguinte, bem cedo, lá estavam o poceiro e seus ajudantes cavando com bastante vontade. A noite chegou e o poço agora tinha talvez quase três metros de profundidade. Usavam uma escada para conseguir descer e cavar o fundo.
De vez em quando, traziam um pouco daquela terra compactada para ser analisada visualmente na superfície à luz do sol. Diziam que estava vindo bem molhada, o que denunciava que o veio estava próximo. Os trabalhos recomeçaram bem cedo pela manhã, e eu dava sempre uma escapada do meu trabalho para acompanhar a perfuração. Nesse dia, o poço já estava a quase cinco metros de profundidade quando fui chamado para tomar uma decisão. Tinham encontrado pedra muito dura, que precisava ser quebrada com ponteiras de ferro, o que ia causar um atraso no prazo de entrega.
Mandei continuarem, e assim, com marretas e ponteiros de ferro, foram lentamente escavando. No dia seguinte, foram muitas as idas do auxiliar do poceiro até um dos ferreiros da cidade para afiar os ponteiros de ferro. Depois de algumas marretadas, o ponteiro perdia a ponta e necessitava ser substituído por outro. Eles eram separados e depois levados até o ferreiro. Dois dias se passaram nesse pesado trabalho com marretas, sem que a escavação prosseguisse muito. Depois de três dias de sofrimento, o poceiro nos avisou que seria necessário explodir aquelas pedras com dinamite para o poço poder avançar. Disse que era somente uma pedra, espécie de laje, que estava obstruindo a passagem e que, uma vez superada, os trabalhos seriam bem mais fáceis, e a água surgiria em abundância.
Acrescentou que, depois, bastava cavar um pouco mais fundo do veio d’água para então criar o reservatório que coletaria a água que verteria da parede. Quando falaram em dinamite, fiquei bastante apreensivo. Perguntei onde eu iria encontrar toda aquela quantidade de explosivo necessária ali na pequena cidade de Barão de Cotegipe. Estávamos vivendo em pleno regime militar, e pensei eu, tudo era muito bem controlado. Lembrei que todos podiam comprar uma arma e munição em Erechim, sem muitas exigências ou burocracia, apenas apresentando a carteira de identidade. Para minha surpresa e incredulidade, o poceiro indicou que bastava ir até o armazém de secos e molhados do Henrique Welcker, localizado em uma esquina da rua principal, a umas três quadras distante da minha casa, para encontrar todo o material necessário.
Ainda não acreditando, depois de alguns minutos, retornamos com uma grande caixa de madeira contendo doze bananas de dinamite, espoletas e pavios! Parecia que íamos iniciar uma guerra. As fortes detonações logo se fizeram ouvir por toda a pequena cidade, apesar de estarem colocadas a uma profundidade de seis metros e sob uma cobertura de pneus velhos para evitar que pedras voassem.
Fiquei muito preocupado com a integridade física dos auxiliares do poceiro, encarregados de posicionar as cargas explosivas necessárias, lá embaixo naquela profundidade. Essas eram cortadas e colocadas em um ou mais furos previamente preparados. Na dinamite, era então colocada uma espoleta de detonação, da qual saía um longo pavio que deveria ser aceso lá em cima, após a retirada das ferramentas e da escada. Cada explosão era seguida pela retirada manual dos cacos de pedras que se soltavam no fundo daquele poço.
Com a força das inúmeras explosões, o poço aumentou em profundidade, mas das suas paredes não escorria ao menos um pequeno filete de água. O poço já estava com mais de sete metros quando chamei o poceiro responsável e decidi desistir, parando aquela inútil perfuração. Ali não íamos conseguir encontrar água. Tratou-se, como pudemos constatar, de uma grande e custosa panaceia. Vivendo e aprendendo.
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