A Região do Alto Uruguai na Década de 1970



Cheguei a Barão de Cotegipe logo após o meio-dia, em 30 de setembro de 1969, depois de uma extenuante jornada de dezesseis horas. A impossibilidade de repousar no antigo ônibus convencional, partindo de Curitiba, no Paraná, minha terra natal, tornou a viagem ainda mais desgastante. Minha missão era assumir como médico no Hospital São Vicente de Paulo, sucedendo um colega notavelmente mais velho que havia deixado o cargo naquela mesma manhã, após mais de 30 anos de dedicação ao hospital.
Barão de Cotegipe, um modesto município situado na região do Alto Uruguai, abrangia cerca de trezentos quilômetros quadrados e contava com uma população aproximada de doze mil habitantes naquela época. O município, emancipado de Erechim em 1964, outrora principal distrito denominado Floresta, revelava-se como uma comunidade ainda em formação.
Desde a minha chegada e, ainda mais enfaticamente durante a primeira metade da década seguinte, testemunhávamos semanalmente a partida constante de numerosas famílias de jovens agricultores, por vezes acompanhados pelos genitores, que se aventuravam para uma fronteira recém-aberta no Mato Grosso do Sul. A falta de venda resultava no fechamento de muitas residências, especialmente no interior do município, deixadas para trás por proprietários ávidos por novos horizontes. Essa cena repetia-se em todos os outros municípios do Alto Uruguai. Uma época de recessão permeava a região, onde o descontentamento era generalizado devido aos preços mínimos pagos pelos produtos agrícolas, e a cooperativa ainda não tinha atingido a robustez que caracterizaria as décadas subsequentes.
A cultura principal na região era o trigo, sendo que Erechim e seus arredores já haviam sido a capital brasileira desse cereal em anos anteriores. Entretanto, esse produto estava gradativamente perdendo espaço devido às importações da Argentina, que reduziam consideravelmente os preços. A cultura da soja, naquela época, era praticamente desconhecida e ainda não tinha sido introduzida na região. Dessa forma, os agricultores dependiam quase que exclusivamente do milho e da criação de suínos para garantir sua subsistência. No entanto, mesmo em anos de boa safra, o milho não atingia preços atrativos, desmotivando cada vez mais os agricultores, que sonhavam em migrar para o Mato Grosso.
A virada na situação ocorreu com a introdução da cultura da soja, que se tornou a redentora da região, desacelerando significativamente o êxodo migratório. Com ela, a cooperativa deu um salto expressivo e, em poucos anos, tornou-se uma das maiores do país. Os programas integrados da cooperativa na criação de suínos, frangos e, posteriormente, com o leite, transformaram a região em uma destacada produtora nacional de alimentos, e os sinais de progresso eram visíveis por toda parte.
Para chegar a Erechim, partindo de Curitiba, era necessário realizar uma viagem até Passo Fundo. Pela BR116, seguimos até Vacaria e, dali, pela RS285, passamos por Lagoa Vermelha. Em Passo Fundo, fazíamos a troca de ônibus e, por estradas de chão esburacadas e poeirentas, em um ônibus pinga-pinga, alcançávamos Erechim, atravessando diversos municípios, como Lagoa Vermelha, Tapejara, Charrua, Estação e Getúlio Vargas. A qualidade da estrada era péssima, e nos dias chuvosos, utilizavam serragem e aparas de madeira, conhecidas na região como maravalhas, no chão do ônibus para minimizar os impactos da grande quantidade de lama deixada pelos passageiros. Nos dias quentes, a poeira insistia em invadir o veículo sempre que a porta ou alguma janela era aberta, durante as frequentes paradas para embarque e desembarque de passageiros. Era comum transportar animais, como galinhas e grandes sacos, juntamente com os passageiros, a maioria composta por agricultores. Somente muitos anos depois, com a abertura da estrada BR153 nos trechos Passo Fundo-Erechim e, posteriormente, Erechim-Concórdia, é que a situação melhorou significativamente.
Continuando, uma vez chegando a Erechim, ainda restavam mais quinze quilômetros de estrada esburacada e poeirenta para finalmente alcançarmos Barão de Cotegipe. Caso não houvesse alguém nos aguardando na rodoviária de Erechim, éramos obrigados a procurar outro ônibus. Dado que em Barão de Cotegipe ainda não existia serviço de táxi, a única opção para percorrer o trajeto da rodoviária ao hospital era a pé ou tentar conseguir uma carona.
Em Cotegipe, assim como nos demais pequenos municípios vizinhos, as ruas não eram pavimentadas, e a poeira e a lama nos dias de chuva tornavam-se um tormento para os moradores e transeuntes. A avenida principal em Cotegipe era margeada por um pequeno riacho que, diante da rodoviária e da igreja, recebia dois afluentes, contornando juntos a Matriz. Em períodos de chuva intensa, esses riachos por vezes transbordavam, fazendo com que a água extravasasse de sua caixa de pedras, invadindo a cidade.
Para acessar um voo, precisávamos percorrer um longo caminho, sempre em estradas de cascalho, até Concórdia, em Santa Catarina, atravessando o rio Uruguai por meio de uma balsa, situada no município de Marcelino Ramos. Apesar de Erechim contar com um aeroporto bem equipado, a crise já o havia deixado sem movimento. Algumas décadas atrás, esse aeroporto fora um dos mais movimentados do interior do Rio Grande do Sul, recebendo vários voos diários de duas ou três companhias comerciais de aviação civil.
Em Erechim, naquela época, as ruas não ostentavam o asfalto moderno. Todas as vias e avenidas da cidade eram revestidas por pedras irregulares, que, além de causarem um alarido considerável na passagem dos veículos, impunham um notável desgaste aos pneus. O cenário urbano era marcado pelo som característico das pedras sendo percorridas pelos automóveis, tornando-se uma trilha sonora peculiar daquele tempo.
A comunicação telefônica na época também sofria com desafios consideráveis. Em Cotegipe, uma pequena central telefônica estava instalada em uma modesta casa de madeira, situada ao lado da igreja. Neste local, uma única telefonista desempenhava a tarefa árdua de atender os escassos telefones existentes na cidade. Ela compartilhava a moradia com sua família e era a responsável por todas as operações da central. Os telefonemas interurbanos para cidades como Curitiba ou Porto Alegre eram quase impossíveis, demandando solicitações de ligação com muitas horas de antecedência. Em tempestades com ventos ou raios, a comunicação ficava prejudicada até que os funcionários da central de Erechim percorressem toda a extensão da linha para localizar o ponto de rompimento.
Para realizar uma chamada para Erechim, uma vez na central, a telefonista precisava executar vários procedimentos, incluindo um método curioso: girar rapidamente uma pequena manivela acoplada a um telefone fixado na parede. Em Erechim, o processo se assemelhava, porém em uma escala um pouco maior. Efetuar uma simples chamada telefônica para Curitiba implicava esperar várias horas após a solicitação no balcão. Muitas vezes, a comunicação falhava devido ao mau tempo, quando não havia linha disponível. Nessa época, não existiam telefones públicos, e as centrais telefônicas também não operavam durante as 24 horas do dia. Como o único médico da cidade, não podia me ausentar por muito tempo devido à grande quantidade de casos urgentes que emergiam a todo momento. Eu me deslocava até Erechim por algumas horas, uma vez por semana, sempre no período da tarde. Quando o hospital necessitava de contato urgente comigo, recorria às emissoras de rádio, muito populares naquela época, e alguém da cidade sempre conseguia me localizar, avisando que eu estava sendo procurado. Um aspecto curioso, e que dava o que falar, era o sistema que o hospital empregava durante as noites para indicar que eu precisava passar lá antes de seguir para casa. Acendiam uma indiscreta luz vermelha no topo do prédio, visível da estrada quando eu descia o morro vindo de Erechim de carro. Apesar de já ter explicado em diversas ocasiões às irmãs o outro significado dessa luz, por questões de praticidade, elas não levaram isso em consideração e continuaram usando o sistema já adotado pelo médico que me antecedeu.
Nesse período em Barão de Cotegipe, não havia sistema de água tratada; a água utilizada para todos os fins provinha de poços, resultando em inúmeras doenças na população devido à contaminação do lençol freático. Estávamos verdadeiramente isolados do restante do mundo. Erechim, por ser a maior cidade e oferecer serviços que os demais municípios não possuíam, como bancos, silos de armazenagem de grãos e um comércio robusto e competitivo, era e ainda é considerada uma espécie de capital na região Alto Uruguai. 
Diariamente, várias centenas de pessoas, a maioria delas agricultores de Cotegipe e dos municípios vizinhos, convergiam para Erechim, dinamizando a economia local. Os bancos e a cooperativa eram os pontos mais procurados por esses visitantes. A economia do município de Barão de Cotegipe era fundamentada quase integralmente na agricultura e na pecuária. Além disso, havia algumas pequenas fábricas de móveis, duas ou três ferrarias, dois moinhos de grãos e uma modesta fábrica de facas, balanças e instrumentos agrícolas. A única indústria de porte médio instalada era uma ervateira, que proporcionava emprego para cerca de três dezenas de trabalhadores. Esse conjunto de atividades constituía o alicerce econômico local, contribuindo para a sustentabilidade e o desenvolvimento da comunidade.



Os Costumes e o Linguajar dos Gaúchos

 



O que mais estranhei na minha transferência de Curitiba para Barão de Cotegipe, foram sem dúvida os os costumes e o linguajar que encontrei aqui no Rio Grande do Sul. O modo de falar dos gaúchos era muito diferente de nós curitibanos e eu ainda não conhecia. Lembro que a Curitiba daquela época, e estamos falando do ano de 1969, já tinha uma população de quase quinhentos mil habitantes e a pequena Barão Cotegipe somente uns doze mil, distribuídos em todo município, sendo que na sede eram menos de dez por cento desse total. Quando cheguei na cidade ainda fazia frio e já estávamos no fim do mês de Setembro de 1969. Chovia muito e o minuano teimava em me acordar durante as noites, quando, com força, tentava passar pelas frestas da janela do meu pequeno quarto. Encontrei uma região muito bonita, com um povo acolhedor, mas, muito atrasada em diversos aspectos. Estávamos vivendo em pleno regime militar onde os acontecimentos políticos se sucediam com bastante rapidez, mas, em Cotegipe o tempo parecia não passar. Tudo era muito silencioso, calmo e feito sem pressa, até parecia que eu estava morando em uma grande fazenda. As poucas notícias que acabavam chegando vinham com dois ou até mais dias de atraso, isso quando o jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, o mais importante da época, conseguia ser entregue na cidade. As rádios brasileiras tinham bastante dificuldades para chegar até nós, mesmo a Guaíba. Somente à noite podiam ser melhor sintonizadas, sem aquela interferência insuportável ouvidas durante o dia. A televisão ainda iria demorar mais alguns anos para chegar nestas bandas. Mesmo a Rádio Guaíba  de Porto Alegre, era difícil de sintonizar. As emissoras de rádio mais potentes eram as argentinas e também alguma uruguaia, mas, infelizmente, com praticamente nenhuma notícia sobre o Brasil. No mês anterior a minha chegada, para regularizar meu registro junto ao Conselho de Medicina do RS, eu tinha ido pela primeira vez à Porto Alegre e a pujança daquela capital me impressionou positivamente. O movimento que encontrei lá era bem maior que em Curitiba da época. Era uma cidade muito grande, com uma população maior. A quantidade de caminhões e o número de indústrias localizadas entre Canoas e Porto Alegre, itinerário por onde passava o ônibus interestadual, também era muito grande e chamou muito a minha atenção. O município de Barão de Cotegipe foi colonizado principalmente por emigrantes europeus, especialmente italianos, poloneses e alemães. Em muito menor proporção por pessoas de inúmeras outras etnias, como russos, ucranianos, búlgaros e judeus. Cada uma delas deixou a sua marca característica, concorrendo neste caldo multiétnico, no uso e nos costumes, na fala, na cultura e na culinária local e gaúcha. Nos dois ou três primeiros meses na nova terra eu tive alguma dificuldade para compreender certas palavras e expressões usadas pelos meus clientes quando chegavam até o hospital para consulta médica. Precisei me esforçar, pois, nem sempre se podia dizer para eles que o “doutor não os estava entendendo”. As pessoas mais idosas eram na maioria descendentes de imigrantes e não falavam o português. Muitas delas eram nascidas na Europa, outros já brasileiros de primeira ou segunda gerações, mas que tinham sido alfabetizados na língua de procedência e em casa não usavam o português. Simplesmente não sabiam falar português, somente algumas palavras. Que eu não entendesse estas línguas eles até compreendiam bem e, assim, sempre se faziam acompanhar por um filho ou uma filha para servirem de tradutores durante as consultas médicas. Mas, não serem entendidos quando estavam falando o seu "português" não era admissível. A língua falada no Rio Grande do Sul era uma mistura de português, espanhol (castelhano) e inúmeras outras palavras características das etnias que ali se fixaram, sobretudo o talian, uma língua que não é um dialeto italiano, criada no meio das comunidades de imigrantes italianos nas antigas colônias da Serra Gaúcha. Como os imigrantes italianos eram majoritariamente de origem das regiões do Vêneto e Lombardia, eram as palavras de seus dialetos os que mais influenciaram no falar dos habitantes de Cotegipe. Eu, nascido em Curitiba, apesar de descendente de italianos não sabia praticamente nada da língua, mas, rapidamente fui aprendendo de tanto ouvir. Consegui também aprender bastante do polonês, o suficiente para entender um pouco melhor os meus clientes nas consultas. Muitas vezes os mais velhos até perguntavam, com indisfarçável satisfação, se eu era descendente de poloneses. Palavras corriqueiras do dia a dia eram bem diferentes do que eu conhecia. Em poucos meses aprendi rapidamente, não sem dificuldade. O uso sistemático de tomar chimarrão, de sempre receber as visitas com uma cuia nas mãos, também me deixou impressionado. Em Curitiba também o uso do chimarrão era muito difuso, mas, muito menos frequente que aqui do Rio Grande do Sul e sempre reservado somente para algumas situações, mais íntimas. A maneira de fazer o tradicional churrasco, usando somente o sal grosso como tempero, também foi uma das boas surpresas que encontrei. No Paraná e Santa Catarina a carne para o churrasco era quase sempre outro tipo de corte e ficava sempre mergulhada em uma salmoura com tempero antes de assar. Os homens descendentes de poloneses, aqueles mais velhos, a maioria imigrantes, quando vinham para uma consulta médica usavam a melhor roupa que tinham, geralmente, usavam uma camisa branca com um vistoso debrum colorido, sem gola e com uma fileira de dois ou três botões espaçados. Um terno escuro completava a "fatiota".



Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS