Uma Morte na Estrada Gelada




Antes da construção das várias barragens hidrelétricas que hoje circundam Barão de Cotegipe, os invernos pareciam muito mais rigorosos. As geadas eram quase diárias, sempre fortes e duravam até o meio da manhã, especialmente nos lugares mais baixos, chamados localmente de canhadas. Eram geadas intensas que conseguiam revolver a terra com seus cristais, atingindo uns dez centímetros ou mais de profundidade.
Nos barrancos à beira das estradas, que ainda vertiam água das chuvas dos dias anteriores, o gelo criava espelhos e formas bizarras congeladas. Os moradores se recolhiam muito cedo para o conforto das suas casas aquecidas pela chapa em brasa do fogão à lenha. O chimarrão e o pinhão sapecado ajudavam a aquecer e estavam sempre presentes.
Nas madrugadas em que eu era chamado para atender alguma urgência no hospital, via-se, lá embaixo, a cidade iluminada pela lua e em todas as casas uma pequena coluna de fumaça saindo das chaminés. Estávamos no mês de julho e, em uma dessas típicas madrugadas de inverno, Caetano, assim era seu nome, o que só vim a saber depois, um motorista de caminhão, passava sozinho por uma estreita e retorcida estrada deserta do interior de Cotegipe, com sua carga de toras de lenha, para serem entregues na cooperativa em Erechim. Ele morava em Santa Catarina, próximo a Chapecó, local que, junto com a mulher Anna, escolheram para morar há mais de quinze anos, depois de deixarem a cidade natal de Veranópolis, na serra gaúcha, nas chamadas terras velhas. Davam seguimento à mesma saga de desbravamento e pioneirismo dos imigrantes italianos que, ano após ano, foram desbravando o interior do Brasil, chegando, em poucos anos, até os estados de Rondônia e a Bahia, levando o progresso para essas regiões.
Caetano era brasileiro, oitavo filho de uma família de imigrantes italianos provenientes da região do Vêneto, já nos últimos anos do século XIX. Como milhares de outros, vieram para o Brasil para tentar melhorar de vida e deixar um futuro melhor para os seus filhos.
Eram aproximadamente quatro e meia da madrugada quando vieram bater na minha porta, chamando-me para atender uma ocorrência em uma estrada do interior. Era necessário fazer a constatação no local de um óbito, para posterior emissão do respectivo atestado, documento necessário para o transporte e enterro do morto. Um corpo tinha sido encontrado ao lado de um caminhão e, segundo as testemunhas, aparentemente tinha morrido enquanto trocava um pneu do veículo.
Antes de sair, tive o cuidado de olhar o termômetro que, no inverno, deixava no gramado em frente à minha casa. A temperatura, naquela hora, estava três graus abaixo de zero e o costumeiro vento minuano, o que fazia a sensação térmica descer a doze graus negativos. Mesmo muito bem agasalhado, com um par de confortáveis botas e um grosso poncho por cima da jaqueta de pele forrada que descia até abaixo dos joelhos, ainda assim sentia o frio penetrando as roupas.
Ao chegar ao local, vimos um caminhão ainda suspenso por um macaco hidráulico em uma das suas rodas traseiras. O pneu furado já havia sido retirado e o estepe já estava no lugar, mas ainda não estava totalmente parafusado. O mal súbito que golpeou mortalmente Caetano aconteceu justamente neste momento, quando ele tentava apertar as porcas dos parafusos.
Seu corpo estava estendido ao lado do rodado traseiro do pesado veículo, já frio e enrijecido, ainda segurando em uma das mãos a grande chave de rodas. Não apresentava sinais de violência ou contusões externas. Tratava-se de morte natural.
Trocar pneus era um fato corriqueiro no trabalho de Caetano. Muitas vezes já o tinha feito durante sua vida de caminhoneiro, especialmente no interior, onde as estradas naquela época não eram pavimentadas. Eram recobertas por um cascalho cor de terra, quebradiço, chamado localmente de batinga, muito encontrado em toda a região. Sobre este cascalho passava apenas uma grande máquina chamada patrola, com a finalidade de aplainar e compactar um pouco o leito da estrada. Os pneus dos veículos que nela trafegavam sofriam muito e a sua durabilidade era reduzida. As trocas de pneus eram muito comuns, tanto nos veículos pequenos quanto nos caminhões.
Caetano estava com cinquenta e sete anos de idade, era obeso e não tinha o hábito de se cuidar muito. Como vim a saber depois, já vinha sofrendo de pressão alta há um bom tempo. Morreu provavelmente por infarto agudo do miocárdio, provocado pelo grande esforço realizado para retirar o pneu rasgado e substituí-lo por outro. Este pesado trabalho braçal foi muito agravado pela baixa temperatura ambiente daquela madrugada, que, para mantê-lo aquecido, exigia do organismo um maior comprometimento do coração.