A Despedida de Boleslaw: Uma História de Amor e Luta


 

Boleslau, aos setenta e cinco anos, era um homem de estatura média, porém robusto e lúcido para sua idade. Trabalhador incansável e perspicaz, sempre soubera manter com dignidade sua numerosa família, os quais desfrutavam de relativo conforto. Viúvo há cerca de cinco anos, desde a perda de sua esposa Matilda, carinhosamente chamada de Tilda, Boleslau havia criado oito filhos vivos e lamentavelmente perdido dois natimortos, entre os quais cinco homens e três mulheres. Com o casamento dos filhos mais velhos, residia agora em sua propriedade rural com o filho mais novo, Piotr, a esposa deste, Teofila, e os dois netos ainda pequenos.

Filho de imigrantes poloneses, assim como sua falecida esposa, Boleslau nutria grande orgulho por suas raízes. Dominava perfeitamente a língua de seus antepassados, habilidade que transmitira a todos os seus filhos e filhas. Apesar de não falar português, orgulhava-se de não ser analfabeto, como muitos de seus contemporâneos. Há anos assinava um jornal mensal em polonês chamado LUD, cujos artigos lia e relia com frequência.

Dois anos antes da consulta, a primeira de sua vida, o "dziadek Boleslaw" – ou vovô Boleslau, como preferia ser chamado – notou dificuldades urinárias, sintomas que se agravaram gradualmente, acompanhado de dores semelhantes a queimaduras. Não atribuiu grande importância ao problema, pois, como afirmava, não apresentava dores pelo corpo ou outros sintomas de doença.

Com o tempo, sua urina adquiriu coloração mais escura, às vezes avermelhada, sugerindo presença de sangue. Os sinais foram se intensificando até que, numa madrugada, Boleslau experimentou dores abdominais intensas e incapacidade de urinar. Urgia uma consulta médica, mas não sem antes vestir sua estimada camisa branca, típica da Polônia, sem gola e com botões em pares. Bordada por sua querida esposa Tilda, reservava-a para ocasiões especiais, como os domingos de missa ou festas na capela.

Naquela madrugada, fui chamado com urgência para examinar o vovô Boleslau, acompanhado por seu filho Piotr para servir de intérprete, visto que ele só se expressava em polonês. Chegaram numa grande camionete, cortesia do prestativo comerciante da localidade, que sempre se dispunha a ajudar os vizinhos em momentos de necessidade.

O que me chamou inicialmente a atenção foi sua indumentária: a camisa branca típica polonesa, sem gola, com botões costurados em pares, adornada com tecido colorido. Sob ela, um paletó preto, conferindo-lhe uma elegância discreta, demonstrando não vaidade, mas respeito pelo médico.

A situação de Boleslau era infelizmente grave: fortes dores abdominais, bexiga distendida e retenção urinária. Após aliviar seus sintomas, pude examiná-lo mais detalhadamente revelando a possibilidade de um tumor. Contudo, naquela época, não dispúnhamos de exames mais avançados para avaliar sua extensão. Agendamos a cirurgia para dois dias depois e deixamos uma sonda para aliviar a obstrução.

Durante a operação, ao explorar a cavidade abdominal, nos deparamos com um achado alarmante: líquido livre e pequenos tumores no fígado, no lobo direito. Surpreendeu-me, pois Boleslau não apresentava dores mesmo sob palpação do abdome. Esses achados representavam uma sentença de morte para o bravo agricultor.

Realizamos apenas biópsia dos tumores hepáticos e de alguns nódulos no peritônio, enviando-os para análise em Porto Alegre. Quase duas semanas depois, recebemos o resultado confirmando minhas suspeitas: um tumor maligno avançado de próstata com metástases hepáticas.

Naquela época, os recursos para quimioterapia em Barão de Cotegipe não existiam, e a família de Boleslau não possuía condições financeiras para buscar tratamento em centros maiores como Santa Maria. A falta de recursos era uma realidade naquele tempo, tornando muitas vezes inacessíveis tratamentos caros e, muitas vezes, ineficazes.

Continuei atendendo Boleslaw por mais alguns meses. Ele enfraquecia e emagrecia progressivamente, até entrar em coma após alguns dias de internação hospitalar e falecer quase dois dias depois. Sua partida foi serena, cercada pelo amor e cuidados de sua família, que, atendendo ao meu conselho e avisados pelo irmão mais novo dias antes, chegaram a tempo de encontrá-lo lúcido. Antes de entrar em coma, ele reconheceu e conversou com todos os filhos e filhas.

"dziadek Boleslaw" partiu numa tarde tranquila de outono.