Era um dia ensolarado, com temperatura amena, plena primavera, em algum ano da década de 1970. Como era de costume, quase todos os domingos, quando a situação dos pacientes internados estava sob controle e o clima não trazia fortes chuvas, eu ia almoçar em Erechim com minha esposa e filhos. Era um pequeno lazer, que na medida do possível eu não não abria mão, para poder relaxar um pouco após uma semana de intenso trabalho no hospital. Devia ser por volta das 13h30 quando, já tendo almoçado, estava fazendo um pequeno passeio de carro pelas ruas quase desertas de Erechim naquela hora, enquanto aguardávamos o contato telefônico agendado com nossos pais. Inesperadamente, em um trecho da Rua Itália, tivemos nosso caminho bloqueado por um homem que, aos gritos e gesticulando freneticamente, nos fez parar. Rapidamente, ele nos informou que o hospital de Barão estava me procurando através das rádios locais, pois havia ocorrido uma emergência e o paciente estava gravemente enfermo.
Naquela época, em Erechim, quase todos me conheciam, inclusive meu carro. Ainda não existiam telefones celulares como os de hoje, nem mesmo os pagers tão comuns que surgiram alguns anos depois, quando me afastava do hospital, sempre deixava instruções sobre onde poderiam me encontrar. No entanto, às vezes ocorriam desencontros e então era necessário ligar para as rádios locais para me localizarem, o que elas sempre faziam com presteza. Assim que tomei conhecimento do chamado, dirigi-me até a telefônica da cidade, que naquele tempo funcionava no prédio onde hoje está a Câmara de Vereadores de Erechim. Liguei para o hospital e fiquei sabendo do ocorrido, que, aliás, tratava-se de um caso muito sério e difícil de resolver. Ordenei à enfermeira chefe de plantão que providenciasse tudo o que eu precisava, passei as instruções necessárias e informei que estava retornando rapidamente para lá. Apesar da estrada ainda não ser asfaltada, mas sim recoberta por pedras soltas que se esfarelavam, conhecidas como "batinga", cheguei em poucos minutos.
Tratava-se de um garoto de aproximadamente 12 anos de idade, magro, mas bastante alto para sua idade, que decidira, com um amigo, escondidos dos pais, sairem para caçar lebres, abundantemente encontradas naqueles tempos nos "potreiros" vizinhos à sua casa na colônia, que ficava não muito longe da sede do município. Ele pegou a espingarda do pai, uma velha arma aqui também conhecida como taquari, onde a munição era carregada pela boca do cano, separando a pólvora com pedaços de pano e papel, chamados de buchas e tudo bem socado com uma vara de metal. A dupla de aventureiros não foi muito longe: ao atravessarem uma cerca de arame farpado, a arma carregada, ao bater com a coronha em uma pedra, disparou repentinamente enquanto o garoto passava entre os fios. O impacto foi terrível, atingindo-o a queima-roupa no lado esquerdo de seu abdome, despejando uma torrente de fogo, chumbo e pedaços de pano parcialmente queimados que penetraram profundamente em seu abdome. A explosão devido à proximidade com o corpo, causou um estrago considerável nas alças intestinais, tanto aquelas do intestino grosso quanto do delgado, perfurando e queimando diversos segmentos. A cavidade abdominal estava repleta de chumbinhos e pedaços chamuscados de pano das buchas. Muitos segmentos de intestinos não existiam mais, tendo sido totalmente dilacerados ou queimados. Ele sangrava abundantemente devido aos ferimentos em importantes artérias e veias abdominais. Ao chegar ao hospital, como relatou a enfermeira chefe, o pequeno paciente estava em coma hemorrágico, devido à perda de muito sangue durante o transporte até o hospital. A equipe de enfermagem havia sido treinada por mim alguns anos antes, logo depois da minha chegada em Cotegipe, para enfrentar casos como aquele. Seguindo as minhas instruções, passadas pelo telefone, sabiam o que precisava ser feito, e foram esses cuidados de como se comportarem, previamente ensaiados, que o salvaram da morte.
A cirurgia durou muitas horas, só terminando quando já era noite, e durante todo o procedimento o pequeno paciente precisou de diversas bolsas de sangue para estabilizar a pressão. Ele ficou internado por várias semanas sob cuidados intensivos, pois necessitava de injeções regulares de antibióticos, de analgésicos potentes, de enormes curativos com a mobilização diária de drenos, além dos cuidados de higiene com a colostomia temporária que fomos obrigados a fazer para salvá-lo. Após 3 ou 4 semanas, recebeu alta hospitalar, com retorno previsto para noventa dias, para uma nova cirurgia a fim de fechar a incomoda colostomia. A ótima organização da equipe e a força da juventude estavam ao seu lado, e em alguns meses já estava curado jogando futebol com os amigos.